O DIABO MORA NO SANGUE (1968)

Direção: Cecil Thiré
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“O Diabo Mora no Sangue” é considerado o primeiro filme rodado no estado de Goiás, mais precisamente, na divisa do estado de Goiás com o Mato Grosso, na ilha de Bananal. O longa é produzido por João Bennio, nome precursor do cinema goiano, e tem a direção de Cecil Thiré, amplamente conhecido pelo seu papel na telenovela “A Próxima Vítima”. Com uma única cópia deteriorada disponível, esta crítica analisa mais atentamente o longa de 1968 que, inclusive, representou o Brasil em Cannes.


A trama de “O Diabo Mora no Sangue” se desenrola nas isoladas margens do Rio Araguaia, um cenário que é exibido no minuto introdutório do longa, com uma trilha sonora marcante de Guerra-Peixe, que compôs dois temas para o filme com modulações e versões diferentes ao longo da projeção. É interessante como a beleza natural e fauna e a flora do ambiente tornam-se quase um personagem por si só durante a abertura. A direção de fotografia capta a natureza exuberante e selvagem do local, criando uma atmosfera de isolamento dos personagens que iremos conhecer.


Depois da exploração natural, conhecemos Júlio, interpretado por Bennio, um pescador solitário que divide sua pequena cabana à beira do Rio Araguaia com sua irmã Maria, que ele cria desde menina. Agora, ela já é uma adulta, mas desconhece o que é o amor, o sexo, ou até mesmo um beijo. A inocência do ambiente construído pelos dois é tamanha que os irmãos dormem na mesma cama. Júlio, por sua vez, já tem certa noção das “carnalidades” da vida, por isso, mantém uma relação com a viúva Rosa, de quem obtém regularmente certos favores.

Tudo vai bem neste microcosmos perfeitamente equilibrado, até a chegada de turistas da cidade, para os quais Júlio trabalha como guia. O longa usa os turistas para perturbar o ambiente; de início a natureza. Os personagens ricos e ignorantes praticam caça e pesca desenfreadamente, sem a menor noção dos impactos que causam no ambiente. Inclusive, quando encontram Maria pela primeira vez, eles questionam se ela é “índia”, e ela responde “não, sou cristã”.


Julio e Maria, quando entram em contato com o comportamento mais sexualmente ativo dos turistas, começam a ver um ao outro com um olhar diferente: mais lascivo. Neste ponto, a trama não só remete a história da gênese de Adão e Eva, com a perda de sua inocência, mas também entra numa vertente filosófica de que o conceito de “certo e errado” só nasce na cabeça no ser humano a partir do momento em que ele convive em sociedade. É como se “O Diabo Mora no Sangue” usasse a relação incestuosa como uma metáfora para a corrupção interna que pode existir dentro de qualquer pessoa.


A interpretação de João Bennio, embora criticada, é bastante taciturna. O ator que veio do teatro encarna muito bem os trejeitos de um pescador com uma vida simples sendo desestabilizada por um desejo que ele entende ser errado, diferente de sua irmã, Maria, com uma interpretação também muito precisa. A inocência e falta de instrução da jovem fazem com que ela não compreenda porquê a relação com o irmão deve ser escondida. Maria também acaba se tornando alvo do desejo de outro pescador, o que adiciona uma camada adicional de tensão ao roteiro, que culmina em um final que, embora possa ser previsível, é executado com uma forte intensidade emocional.

"O Diabo Mora no Sangue", em última análise, é um mergulho profundo nos limites da moralidade, oferecendo uma narrativa desconfortável sobre desejo. É um filme que exige do espectador uma disposição para confrontar verdades desagradáveis sobre a condição miserável no qual se encontra não só a natureza, mas também uma parte isolada e esquecida da população brasileira, e que, mesmo depois de tantos anos, permanece dessa maneira.


Autor: William Almeida