As Duas Irenes opera ao redor de três aspectos, narrativos e temáticos, de maneira talentosa ainda que inconclusivos. Destaca-se a trama central das duas garotas que tem o mesmo nome, filhas de um mesmo pai, e que começam a se relacionar sem que suas famílias saibam. Há essa atmosfera de família tradicional a beira do colapso, porém longe da dramaticidade de uma Anna Muylaert. É um filme ensolarado e terno, de silêncios e poucos embates. Fábio Meira opta por fugir ao óbvio ataque à figura masculina do pai, que é tratado pelas filhas com um afeto genuíno, e ganha cenas para que Marco Ricca possa desdobrar essa figura do pai amoroso, próximo. A tão anunciada crise familiar nunca de fato acontece, num final em aberto que é inevitavelmente frustrante, sem que a vida dessas mulheres enganadas por Tonico possa encontrar qualquer tipo de redenção ou vingança. Ainda assim, é acima de tudo curioso que o filme opte pelo caminho do não-enfrentamento, pela não-dissolução da família. Fábio, em seu segundo longa Tia Virgínia, adotaria postura semelhante quando, na cena de maior crise entre as irmãs, ele opta por subir a música de Milton Nascimento de modo a encobrir todo o diálogo e a encenação se dê longe da câmera. Em ambos os filmes há essa fuga do clímax, em As Duas Irenes bem mais frustrante.
Outro eixo é a relação que se estabelece entre as duas garotas, que para além dos conflitos familiares, andam por aí a ir ao cinema, pracinhas, lagos, a flertar com garotos e entre si. A simbologia do duplo é evocada, com muitas cenas de espelho, com a troca de figurinos, com a troca de olhares, e na atuação das garotas em que a personalidade de uma vai se misturando à da outra. Mais evidente na Irene 1, a filha do meio desprovida de atenção da família, que deixa de ser cabisbaixa e escondida e começa a desabrochar para o mundo no contato com a irmã bastarda. O clímax dessa relação é o beijo, filmado de modo a juntar a cabeça das duas garotas em uma cabeça só, a completa fusão de ambas, numa cena que começa com ambas se olhando na câmera, que faz o papel de espelho. Deliciosamente bergmaniano, Persona, ainda que o aceno não traga maiores desdobramentos psicológicos como no filme do sueco. É a partir dali, do beijo, que ambas poderão então trocar de casa, pois já são imagens uma da outra.
Por fim, o filme se delonga mesmo, até mais do que no drama familiar, é no despertar sexual dessas garotas, em especial Irene 1, sendo a 2 a que lhe mostra o caminho. O primeiro beijo, o contato com os garotos, a paquera no cinema, o vislumbrar da irmã tomando banho. Aborda o despertar das garotas com um erotismo perverso, no limite do proibido, ciente das tensões morais em jogo. Não apenas no suposto desejo incestuoso entre as irmãs, mas também na exposição breve da nudez das garotas. O filme assumindo para si o olhar curioso de Irene 1 para o corpo da outra (e também na breve cena no lago, em que ela olha um garoto pular pelado na água), numa sexualidade ainda não domesticada, pulsante para todos os lados.
É um despertar sexual que prenuncia às Irenes um mundo onde as mulheres sofrem na mão dos homens, incompreensíveis, ora maldosos ora afetuosos. Seja na figura óbvia do pai, indiferente ao drama das mães, seja na figura do jovem Murilo, que rejeita Irene 2 sem maiores justificativas. Um universo masculino embrutecido, que mata os gatos no telhado sem hesitação, em contraste ao universo feminino choroso, reprimido, preso ao lar. Há ainda as convenções sociais, da festa de Solange ao casamento de aparências à brincadeira que revela quantos filhos uma mulher terá. Um destino já todo traçado, que as Irenes vão descobrindo e se revoltando, pedras na mão.
O filme cozinha estes três temas lentamente, em cenas longas, sem grandes excitações. Opta pelo caminho da inconclusão narrativa, acreditando ser suficiente o amadurecer das garotas, que tomam para si o poder de transformar a própria vida. Não eleva seus temas à superfície, preferindo o não-dito. Tem esse aspecto interioriano de novela das 6, de drama prosaico, mas com uma consistência dramatúrgica e de forma muito sofisticada. Ainda que a história às vezes peça mais gritaria.