Terra e Luz é um longa gestado dentro do curso de cinema do IFG, fundado na cidade de Goiás em 2015. Trata-se de um feito surpreendente para o curso que à época ainda estava em seu terceiro ano. Produzido inteiramente por alunos e professores, sem aportes financeiros, consta com o trabalho de profissionais experientes como Carlos Cipriano na fotografia e Guile Martins na montagem e som. O diretor Renné França sabe medir sua ambição diante de sua estrutura orçamentária, se alinhando ao cinema de horror minimalista, em que pouco é dito (o primeiro diálogo já nos 30 minutos) e pouco acontece. É um filme que habita as muitas paisagens do cerrado pós-apocalíptico, para além de qualquer interesse dramatúrgico e narrativo.
O clichê do homem que se vê incumbido de cuidar de uma garotinha em um mundo que já acabou, é mesmo apenas um pano de fundo para as muitas experimentações de som, montagem, de efeitos especiais e mesmo fotográficas que o longa vai se propor. Cada novo espaço que os personagens percorrem é emblemático, distinguíveis um do outro, a natureza cresce exuberante no filme, seu olhar para o cerrado um grande mérito. Essa natureza que se renova a cada sequência, entrecortadas por este plano horizontal dos personagens atravessando a tela, assinalando a jornada dos protagonistas como um eterno retorno, sem destino, cíclica. Aos poucos a noção de que estão no inferno se estabelecendo. Cíclica também na sua trilha sonora, que incomodamente traz uma trombeta grave que pontua o filme todo, como um metrônomo, a passagem do tempo que angústia os protagonistas pela vinda da noite, e que tornam o filme essa prisão sonora, do constante ribombar que aturde. Guile tem muito espaço para experimentação no desenho de som, uma vez que é ele que dita muitos dos perigos que se escondem no fora do quadro, misturando os sons dos pássaros e animais do cerrado aos grunhidos dos vampiros e aos gritos das vítimas que são lancinantes. É uma cama sonora expressionista, repleta de vida para além do que vemos em tela, sugestiva de muitos outros horrores.
Mas ainda que ele tenha essa característica do horror sugestivo e da manipulação sensorial do espectador, Terra e Luz é também um filme muito físico, cheio de textura. A constante sujeira dos personagens, as cenas de mutilação, o ataque dos vampiros, Pedro Otto comendo peixes e carnes cruas...traz também essa visceralidade do cinema frontal, despudorado. Trafega entre a sugestão e o explícito num estado de constante afrontamento do espectador (há apenas uma cena de respiro, de relaxamento da musculatura, dos protagonistas se banhando na bica).
Vendo o filme em 2017 lembro de não gostar. Mas rever o filme ajuda sua assimilação, já sabendo qual sua proposta e como ele de fato é. Pois muitas de suas escolhas estéticas e formais trazem em si a ideia do incômodo, de angustiar o espectador. Um filme de horror de fato, que situa a experiência de assisti-lo bem colada aos personagens, no calor, na sujeira, no barulho, na agonia infernal que enfrentam. A trama simplória de videogame (que o filme aponta também em quadrinhos) situa-nos demais em terras conhecidas, já mapeadas, quebrando um tanto do que filme traz em si de ataque aos sentidos. Mas seus momentos mais calados e deambulatórios carregam uma autenticidade de cinema físico, uma virada ao ontológico da cena (a boca rasgando o peixe). E ontológico não só pela cobrança física dos atores, mas também pelo desbravar destas paisagens que é um cerrado vislumbrante porém não-romântico, natureza inóspita e pouco receptiva aos humanos. Eles parecem andar por caminhos não desenhados para eles. Um filme apaixonado pelo cerrado na sua beleza e nos seus horrores. Agreste, rústico.