TAEGO ÃWA (2016)

Direção: Marcela Borela e Henrique Borela
Descrição da imagem 1



Taego Ãwa é um documentário em cujo cerne reside a questão insolúvel, e por isso mesmo tão cara, do contato entre o branco e o indígena. Uma de suas primeiras imagens é justamente a câmera subjetiva sobre uma canoa se aproximando da terra. Uma imagem do branco chegando, o barco rumando à costa. É perceptível a cautela apresentada pela equipe no lidar com os Ãwa, na postura quieta da câmera, mais observativa em sua distância, na ausência de grandes movimentos, de encenação rigorosa. No silêncio dos realizadores, que nunca falam (com exceção da cena dentro do carro, em que conversam com outro branco). Na presença da voz indígena a narrar toda a história, majoritariamente na própria língua. Cautela essa da imagem contemporânea, de um cinema documentário atual, preocupado com as questões da hierarquia estabelecida entre quem filma e quem é filmado. O cinema um campo de disputa. Não de batalha, porque a postura dos realizadores não é violenta. Eles negam a imagem dos primeiros contatos, momento tão caro ao cinema etnográfico, o choque do chegar com a câmera na mão, do travar conhecimento. Às imagens que se seguem ao plano da canoa se aproximando da costa revelam uma aldeia já acostumada à presença da câmera. A postura relaxada com que contam a história dos Ãwa é uma novidade. Parecem à vontade, distante da rigidez interrogatória do depoimento, da fala oficial, do escrever a história. O cinema habita o espaço deles, chega cauteloso, senta-se para escutar.


Essa postura do filme é elevada quando colocada diante dos fortes arquivos, que violentam a figura dos indígenas, principalmente de Tutawa, das mais diversas maneiras. Seja no contato forçado da Funai com eles, nas imagens de 1970, essa ideia clássica do contato, da curiosidade, da zero empatia para com o filmado, zero interesse em estabelecer um acordo, a câmera chega apontada, inescapável. Seja nas imagens em VHS da UFG, que expressam um respeito pela prática da caça, no esplendor de Tutawa caçando um veado, mas que não vão muito além do interesse pelo indígena para além de suas práticas. Na pequena cena em que tentam conversar, existe um ruído intransponível na comunicação, constrangimento que é transformado em zombaria pelo pessoal da universidade.


Neste terceiro contato, que é o filme, é sensível a intenção de ser diferente, de ouvir, de estabelecer o acordo. Não se trata de dar voz, porque isso pressupõe a caridade, o ajudar o oprimido. É muito mais uma vontade genuína de tentar uma aproximação que seja respeitosa para com eles, entendendo que esta tensão entre os que filmam e os sujeitos filmados é inerente ao fazer cinema, sem a inocência de ignorar as questões de poder envolvidas. Há mesmo estes planos em que os Ãwa encaram a câmera, não como um simples retrato, mas com uma postura de enfrentamento, deflagrando não apenas a tensão com os que filmam, mas também com o espectador. Assumir o confronto, reivindicar o olhar, relevar o equipamento obsceno do cinema.


Por outro lado, os diretores não se eximem da criação fílmica e interferem diretamente no real através da montagem, que cria associações incisivas entre arquivo e imagens do agora; e que interfere diretamente nos arquivos em sua montagem interna, ressignificando o seu propósito (a nobreza conferida a Tutawa na cena em que caça o veado estaria evidente no arquivo em seu formato original? Há uma montagem que sutilmente constrói esse triunfo). Mesmo na mais deflagrada das associações, entre o western estadunidense e a condição dos Ãwa, a montagem abrindo-se a outros sentidos para além do circunscrito à aldeia. Da violência cometida aos Ãwa ao genocídio indígena na América que sempre foi assunto de cinema.


Tamanha cautela confere ao filme também um sentimento de placidez, quietude, que no revelar das múltiplas violências sofridas pelos Ãwa acabam tornando o documentário um tanto melancólico. Derrotista. Sentimento que amarga os créditos finais, em memória de tantos Ãwa falecidos, inclusive o protagonista Tutawa. Nisto o gesto de fabulação de enfiar a placa na terra que lhes foi tomada, em que o filme propõe uma microvitória, simbólica, é agridoce. O documentário incapaz de um gesto maior que faça os Tutawa vitoriosos, ao acenar para este tipo de imagem revela a quixotez da empreitada.


Taego Awã é tímido demais em seu ritmo cuidadoso, e quixotesco na articulação da luta e resistência dos Ãwa, mas chega como um pioneiro no cinema goiano na escuta do indígena, na complexificação das relações entre quem filma e quem é filmado.

Autor: Luciano Evangelista