O DIABO MORA NO SANGUE (1968) - Texto 2

Direção: Cecil Thiré
Descrição da imagem 1



Tido como o primeiro longa de ficção de Goiás (feito disputado com A Fraude, filme de Jocelan, gravado em Goiânia em 1968), a primeira produção de João Bennio (que além de produtor atua como protagonista e fez o argumento) é certamente seu filme de maior sucesso entre a crítica, com boa participação nos festivais internacionais, tendo estreado em Cannes, talvez o único filme do estado que passou por lá. Hoje é pouco visto, as péssimas cópias inviabilizam que estes primeiros filmes goianos cheguem a pessoas além daquelas que estão muito, mas muito mesmo, dispostas a conhecê-los. A cópia existente é detonada em vermelho e branco (e fica a dúvida se ela um dia foi inteiramente preto e branco ou se haviam tingimentos na película), o que acaba a conferir um grafismo singular ao filme, que lida com sangue e sexo e morte, todo tingido num vermelho e branco quente de sol estourando no rio Araguaia. Ainda assim é uma obra muito falada, tanto pelo seu título de pioneira quanto pelo tema tabu que aborda, sendo fácil encontrá-la na internet.


Distante das comédias caipiras que faria depois, Bennio aqui conta uma história de horror de corrupção do paraíso, em que um casal de irmãos de vida idílica, Júlio e Maria, cometem um pecado mortal. Traz questões que estariam presentes nos filmes que ele mesmo dirigiria depois, como as tensões entre o urbano e o rural e o moralismo religioso das pequenas cidades interioranas de Goiás. Mas em O Diabo Mora no Sangue, muito devido à direção mais consistente de Cecil Thiré e a um roteiro menos panorâmico, que vai aprofundando, estes temas caros a Bennio ganham uma gravidade real, de horror legítimo, e quando o incesto finalmente acontece não é mero exploitation ou provocação.


Boa parte do filme é dedicada a construir o cenário de paraíso e inocência que o casal de irmãos habitam na beira do Rio Araguaia, na ilha do Bananal. Passa por imagens contemplativas do esplendor da fauna e flora e da paisagem do rio, até pela presença mais documental de indígenas e pessoas da comunidade local trafegando em canoas ou se alimentando junto aos animais, vivendo em cabanas. Há o caráter exploitation da morte dos diversos animais em cena, ações que retratam ora o próprio lidar dos locais com a natureza, ora o desrespeito dos turistas para com aquela paisagem. São mais mortes de animais que em Holocausto Canibal, incluindo também uma cena bem longa com uma tartaruga que seca ao sol, mas o filme não parece ter consciência de que estas imagens trazem uma questão ética. As mortes apontam para a diferente moralidade dos turistas e dos nativos, sendo a morte perpetrada pelos primeiros evocando crueldade, em meio a risadas e utilizando armas de fogo; enquanto que os nativos matam apenas para se alimentar. Esse primeiro momento do filme apresenta um lugar em que a morte faz parte do cotidiano local, e para a natureza, sempre no contra-plano de tudo, é indiferente se esta é cruel ou não. É Júlio quem questiona os turistas do porque matar por matar.


É Júlio quem se culpa moralmente por desejar a irmã. No contato com os festivos turistas sempre seminus, que o provocam, ele começa a questionar sua sexualidade, antes satisfeita de maneira protocolar com uma viúva da região. Ele oferece o biquini da turista à Maria, que se troca na frente dele. Mas Júlio se reprime. A irmã, alheia a moral da cidade, não vê nada de errado em dormir com Júlio. É o contato com o outro (os turistas e o outro pescador do local) que coloca Júlio em cheque diante de seu desejo. A natureza é indiferente ao sexo entre irmãos, e justamente um ferimento de arraia é que vai levá-los a primeira transa. Pecadores no paraíso, com direito a Maria oferecendo a Júlio um caju, a maçã símbolo da profanação.


O filme avança lentamente rumo a um abismo que leva a morte, sem desvios cômicos. A perturbação mental de Júlio se agrava quando seu filho com Maria nasce morto, o desgaste tomando conta da forma do filme, câmera e corpos trêmulos, febris, envoltos em uma sonoridade desorientadora da trilha de Guerra-Peixe, tentando dar conta do fim da inocência. É existencialista, ambos passam a correr como em filme de Cinema Novo, com Júlio querendo ir para um outro lugar impossível onde não é irmão dela.


É de se questionar porque ele decidiu fazer um filme assim, de horror psicológico, e naturalmente vem à mente o cinema de José Mojica Marins, que também lida com a religiosidade nas cidades do interior pela chave do horror e era extremamente popular na época. Mas se Mojica lida com o terror trazendo símbolos mais populares e caricatos, tanto pela figura do Zé do Caixão quanto pela presença de aranhas, inferno, cemitérios, ratos, maldições, a morte; no filme de Thiré o horror se estabelece unicamente na cabeça dos personagens e no quanto o tema nos provoca em nosso moralismo. É difícil imaginar que um filme assim pudesse ser lucrativo financeiramente, ainda que Bennio almejasse isso ao fazê-lo. Naturalmente foi censurado à época, e ainda hoje sua verve provocadora é evidente. Um pequeno conto de inocência perdida, natureza corrompida.


Autor: Luciano Evangelista