SIMEÃO, O BOÊMIO (1969) - Texto 2

Direção: João Bennio
Descrição da imagem 1


Simeão é um sujeito que anda de cueca pelas ruas de Pirenópolis (no filme com um nome fictício), causando arrepios nas carolas católicas e medo de insurgência nos coronéis da cidade. Entre os seus, os bêbados e as prostitutas, Simeão se diverte cercado de mulheres na cachoeira ou explicando sua filosofia de que a Terra não existe aos colegas de bar. Os três núcleos do filme são caricatos, sem maiores nuances, pintando em seu primeiro ato uma cidade de papelão, marcada pelos estereótipos. A geografia da cidade não se concretiza, prejudicando a ideia deste homem que insurge contra uma unicidade da moral e da tradição. Mesmo Simeão, este bêbado provocador com ideias de terraplana, não se apresenta de início como um quixote digno de combater a hipocrisia (estabelecida nos planos que nos mostram a imaginação dos personagens sendo contrária aquilo que eles professam). É um personagem que supõe-se uma afronta à moral tacanha da cidadezinha cristã, mas que surge inicialmente causando mais estranhamento do que riso. A filiação a ele não é imediata, em seu primeiro ato o filme tropeça ao tentar fazer este panorama cômico de uma cidadezinha do interior de Goiás.


E então, em uma curva surpreendente da trama, a história volta-se para um casal filho de famílias rivais que enamora-se na igreja. A cena do sexo consumado na torre da matriz é das melhores que João Bennio já filmou, de um suspense crescente e um fatalismo triste, dramático. A montagem moderna dá conta de diversos olhos que testemunham o pecado mortal: as santas, as corujas, um capelão. O ato do casal, ainda que terno, ambos abraçados ao final, toma proporções drásticas, de ruptura social, de morte iminente. Uma sensação inesperada para um filme que sequer tinha uma boa cena até então, apenas um amontoado de esquetes pouco humoradas em que grupos de homens e mulheres discutiam como punir Simeão. O eixo narrativo desloca-se para um drama real, em que enfim a moral opressora da cidade e o afrontar esta moral tomam contornos mais grossos, evidentes, deixando de ser a mera caricatura da disputa entre os núcleos apresentados.


A rebeldia do casal encaminha o filme para um clímax de western, em que os dois grupos armados encontram-se diante da casa, tiros sendo disparados. É western de fato, ainda que breve. Simeão, em um lampejo de consciência, chega heroico para interromper a violência, retomando para si a autoridade verdadeiramente cristã, sua figura recortada com a igreja ao fundo, sobrepondo-a. Seu exército de marginais e prostitutas conferindo ao seu discurso uma realidade crua, despida da etiqueta e da arrogância daqueles que professaram até então.


Se o filme a princípio aponta uma ode a boêmia e uma crítica à moralidade católica de uma cidade de interior, ele por fim faz um movimento menos combativo à cristandade, numa ideia de retomar os verdadeiros ideais cristãos. Não a ruptura, mas sim despir a autoridade dos "puro-sangue", como diz Simeão, e devolvê-la ao povo. Complexifica o filme para além do simples causo, torna-o uma parábola.


Autor: Luciano Evangelista